Denúncia anônima usada por Moraes para bloquear redes sociais de deputado estadual foi, na verdade, produzida pelo TSE por sua própria ordem

Um processo mantido em sigilo por quase dois anos revelou erros e contradições no uso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por Alexandre de Moraes para bloquear contas de redes sociais de apoiadores de Jair Bolsonaro. A investigação, que resultou na suspensão dos perfis de um ex-deputado estadual, expõe como o órgão de combate à desinformação do TSE foi utilizado informalmente para alimentar inquéritos criminais conduzidos pelo ministro, levantando dúvidas sobre a legalidade e transparência das ações.

O Início da Investigação: Denúncia Falsa e Pedido Informal

O caso teve início no dia 12 de novembro de 2022, quando o juiz Airton Vieira, auxiliar de Moraes no Supremo Tribunal Federal (STF), solicitou a Eduardo Tagliaferro, então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE, que identificasse e bloqueasse postagens nas redes sociais relacionadas a protestos contra ministros do STF. As mensagens foram trocadas via WhatsApp e incluíam vídeos e posts que divulgavam a localização dos ministros em Nova York, onde participariam de um evento.

Denúncia Anônima Falsa: A Ocultação da Origem do Pedido

Apesar de o pedido ter partido do gabinete de Moraes, ele foi registrado como uma denúncia “anônima”, ocultando a verdadeira origem da solicitação. Mesmo com a percepção interna de que as postagens não estavam ligadas ao processo eleitoral, Tagliaferro produziu um relatório a pedido de Vieira, que posteriormente serviu de base para decisões de bloqueio. Esse uso do TSE para finalidades alheias ao seu papel eleitoral foi feito de maneira discreta e sem transparência.

Bloqueio Baseado em Erros: Decisão Precipitada e Falhas de Identificação

Com base no relatório, Moraes determinou o bloqueio das redes sociais do então deputado estadual Homero Marchese. No entanto, o documento produzido por Tagliaferro identificou equivocadamente Marchese como autor de uma postagem que divulgava o endereço do hotel em que os ministros estariam hospedados, quando na realidade ele não fez essa publicação. Esse erro resultou em uma decisão precipitada e sem respaldo em provas concretas, mas ainda assim as contas de Marchese no Twitter, Facebook e Instagram foram suspensas.

Decisão Sem Consulta ao MP ou à Polícia Federal

O bloqueio foi decidido sem consulta prévia ao Ministério Público ou à Polícia Federal, o que contradiz práticas usuais em investigações desse tipo. Moraes tomou a decisão de forma emergencial, sem realizar diligências adicionais, justificando o bloqueio com a alegação de que as postagens colocavam em risco a segurança dos magistrados.

As Contradições de Moraes em Plenário

Após reportagens exporem o caso, Moraes defendeu-se em plenário, afirmando que todos os alvos de relatórios do TSE já eram investigados em outros inquéritos sob sua relatoria no STF. Entretanto, documentos do processo demonstram que Marchese não estava envolvido em investigações anteriores. Moraes também afirmou que todos os recursos contra suas decisões foram levados ao plenário, mas os registros indicam que os agravos regimentais apresentados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo próprio ex-deputado não foram analisados.

O impacto dessas decisões se estendeu por meses. As redes sociais de Marchese permaneceram bloqueadas por períodos variados: o Instagram, seu principal canal de comunicação, ficou inativo por quase seis meses, enquanto o Twitter e o Facebook foram restaurados após um mês e meio. A demora no desbloqueio e a falta de clareza no processo geraram questionamentos sobre a condução da investigação e a transparência das decisões.

O desbloqueio das contas ocorreu após um pedido do presidente da Câmara, Arthur Lira, que solicitou a revogação de bloqueios com base em uma resolução do TSE. Entretanto, Marchese nunca foi deputado federal, o que levanta dúvidas sobre a aplicabilidade desse pedido. Além disso, Moraes decidiu remeter o caso à primeira instância, alegando que o ex-deputado não tinha mais foro privilegiado, um movimento que gerou controvérsias, visto que a prerrogativa deveria se aplicar a deputados federais, e não estaduais.

Esse episódio evidencia a crescente judicialização das disputas políticas no Brasil, com o Judiciário assumindo um papel cada vez mais central em conflitos polarizados. O uso do TSE para investigações criminais e os erros processuais expostos no caso de Marchese levantam preocupações sobre os limites da atuação ministerial e o respeito às garantias processuais. A condução do processo e a falta de transparência reforçam a necessidade de maior controle e escrutínio sobre as práticas adotadas por ministros em casos de alta sensibilidade política.

O caso ressalta a importância de preservar a integridade dos processos judiciais e os limites das atribuições institucionais, evitando que ações pouco transparentes comprometam a confiança nas instituições democráticas. A atuação de Moraes neste caso específico destaca o risco de extrapolação de competências e as consequências de decisões que, embora tomadas sob a justificativa de proteger a segurança nacional, acabam gerando impactos desproporcionais na esfera política e social.