O ministro do STF determinou nesta sexta-feira (1º) a retirada de circulação de obras publicadas entre 2008 e 2009 pela editora Conceito Editorial. A decisão atendeu a um pedido do Ministério Público Federal, após identificação de conteúdo que associava a comunidade LGBTQIA+ a “anomalias sexuais” e continha expressões degradantes contra mulheres.
As obras, publicadas entre 2008 e 2009, foram alvo de denúncia do Ministério Público Federal (MPF) após manifestações de estudantes da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde os livros estavam disponíveis para consulta.
Entre os trechos considerados ofensivos, destacam-se afirmações que classificam o “homossexualismo” como “anomalia sexual” e relacionam a comunidade LGBTQIA+ ao vírus HIV, uma associação já abandonada há décadas pela ciência. Outro trecho sugere que funcionários homossexuais seriam “partidários de uma causa maléfica” e que deveriam ser “tratados” ou demitidos.
O ministro determinou não apenas a retirada das obras de circulação, mas também proibiu novas impressões ou comercialização dos títulos em sua forma atual. Entretanto, a decisão permite que as obras sejam reeditadas após a remoção dos trechos considerados discriminatórios, estabelecendo assim uma forma de censura prévia sobre conteúdo editorial.
O perigo histórico de proibir livros incômodos
Ao longo da história, a supressão de obras literárias tem sido utilizada como ferramenta para impor ideologias e silenciar vozes dissidentes. Em 213 a.C., o imperador chinês Qin Shi Huang ordenou a queima de livros e o sepultamento de intelectuais, visando eliminar pensamentos contrários ao seu regime e consolidar o poder centralizado. Séculos depois, em 1933, o regime nazista na Alemanha promoveu a queima de mais de 25.000 livros em praças públicas, marcando o início de uma era de censura e controle cultural.
No contexto ocidental, a Igreja Católica instituiu o Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) em 1559, uma lista de obras consideradas heréticas ou moralmente perigosas, cuja leitura era vetada aos fiéis. Esse índice vigorou por mais de 400 anos, sendo abolido apenas em 1966. Entre os autores censurados estavam figuras como Galileu Galilei, Nicolau Copérnico e René Descartes, cujas contribuições científicas e filosóficas foram inicialmente reprimidas pela instituição religiosa.
Esses episódios históricos evidenciam os riscos associados à restrição da circulação de ideias e ao impacto negativo que tais ações podem ter sobre a liberdade de expressão e o desenvolvimento cultural.
Crescimento contemporâneo de censura
A recente decisão monocrática do ministro Flávio Dino levanta questões cruciais sobre os limites entre proteção constitucional e censura. Embora fundamentada na defesa da dignidade humana, a medida gera preocupações sobre possíveis precedentes para o cerceamento da liberdade de expressão.
A história nos mostra que o banimento de livros frequentemente começa com justificativas aparentemente nobres. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve um aumento de 33% nos casos de banimento de livros em escolas públicas entre 2022 e 2023, impactando mais de 1.500 títulos e afetando o trabalho de cerca de 1.480 autores, ilustradores e tradutores.
O filósofo Karl Popper argumenta que, embora seja necessário estabelecer limites para proteger a democracia, é preciso cautela para não transformar essa proteção em instrumento de autoritarismo. Como alerta a escritora Chimamanda Adichie, “meu primeiro instinto, ao saber que um livro foi banido, é procurá-lo e lê-lo“, evidenciando como a censura frequentemente produz o efeito contrário ao pretendido.
A universidade é lugar para debater ou doutrinar?
A decisão levanta questões sobre a autonomia universitária e a liberdade acadêmica. “Então se um estudande não gostar do que um livro está falando pode acionar o Ministério Público e banir a obra“? Indagou um especialista em liberdade de expressão. Diferentemente das queimas de livros históricas, que visavam eliminar completamente certas ideias, a atual decisão busca equilibrar a liberdade de expressão com a proteção constitucional contra discriminação.
A decisão monocrática, sem debate colegiado, estabelece um precedente preocupante. O argumento utilizado, por sua amplitude, poderia teoricamente ser aplicado a qualquer obra que desagrade determinados grupos, criando um ambiente de autocensura e intimidação similar ao observado em outros países.
A liberdade de expressão constitui um pilar fundamental da democracia, sendo “a linguagem dos que não têm poder“, como destaca Adichie. Quando o Estado assume o papel de censor, mesmo com boas intenções, corre-se o risco de minar esse princípio essencial. Como a história demonstra, “o controle da informação fica restrito a uma elite política. E quem controla a informação controla a sociedade“.
A Questão Fundamental
Em um momento em que o mundo enfrenta novamente ondas de censura e banimento de livros, emerge uma questão crucial: Como uma sociedade democrática pode proteger grupos vulneráveis sem repetir os erros históricos do autoritarismo intelectual?
O precedente estabelecido pela decisão monocrática do ministro Dino representa um momento crítico para a liberdade intelectual no Brasil. Quando um único magistrado pode determinar o banimento de obras literárias, mesmo que controversas, abre-se uma porta perigosa para a censura institucionalizada sob o manto da proteção social.