Era 10 de maio. Uma cafeteria de shopping em Joinville/SC. Era para ser apenas mais um incidente que passa despercebido, como tantos outros que ocorrem todos os dias: um cliente reclama da diferença de preços, o gerente verifica, corrige, pede desculpas. Mas não foi.
O que era trivial escalou para um caso nacional porque o cliente insatisfeito era o Padre Fábio de Melo, influenciador com 26 milhões de seguidores; que sacou seu celular e fez um post onde reclamou do atendimento, onde seu descontentamento transformou-se em decreto digital. Resultado: a Havana demitiu imediatamente o gerente.

O ex-gerente, Jair José Aguiar da Rosa, contestou a versão apresentada pelo padre, afirmando que não teve contato direto com ele durante a compra. Segundo Jair, a interação ocorreu entre o padre e outra funcionária da loja. A Havana, em vez de tratar a questão com sabedoria e calma, demitiu sumariamente o gerente. Jair alega que sua demissão foi precipitada e motivada pela exposição nas redes sociais, sem uma investigação adequada dos fatos.
Este caso tornou-se uma parábola da era da pós-verdade, onde influência digital, lógica corporativa e cultura do cancelamento convergem para erodir a verdade, a justiça e a dignidade humana. Este evento, aparentemente insignificante, é um espelho incômodo da estrutura de poder simbólico, da lógica sacrificial corporativa e da profunda crise espiritual que definem a contemporaneidade.
Um post na internet é uma denuncia no Tribunal da Reputação
Quando o Padre Fábio de Melo, figura que amalgama autoridade sacerdotal com alcance de influenciador digital, usou suas redes sociais para expor um suposto mau atendimento, não iniciou um debate, mas um julgamento sumário. O veredito, executado pela Havana com a demissão expedita do gerente, revela a anatomia doente das nossas relações sociais e institucionais.
Este é o cerne de uma distorção perigosa. O influenciador, muitas vezes revestido de autoridade moral (especialmente líderes religiosos), opera num espaço híbrido entre o pessoal, o jornalístico e o pastoral – sem se submeter integralmente às regras de nenhum. Sem editorias rigorosas, fact-checking sistemático ou obrigação ética consolidada, o impulso de compartilhar uma experiência negativa com uma audiência massiva cria uma justiça paralela e sumária. A sentença é a perda do emprego e o linchamento virtual, e o “réu” é um cidadão sem recursos simbólicos equivalentes para se defender. A monetização indireta – através do engajamento gerado por polêmicas – adiciona uma camada sórdida de incentivo perverso a este ecossistema.
A Covardia Institucional e o Sacrifício do Trabalhador
A Cafeteria Havana emerge como outro ator crucial nesta tragédia. Sua resposta imediata – demitir o gerente e, segundo o sindicato, divulgar essa demissão como ação reparadora – é um atestado de falência ética e gerencial. Em vez de apuração interna minuciosa, confrontando versões, verificando gravações (que existiam) e garantindo o direito de defesa, a empresa optou pelo bode expiatório, a via mais rápida para conter o dano reputacional. Essa postura não é apenas ilegal, como argumenta o Sitratuh com base na Lei 9.029/1995 e nos princípios constitucionais; é moralmente repugnante. Revela uma visão do trabalhador não como ser humano dotado de dignidade e direitos, mas como peça descartável num jogo de percepções públicas.
Esta covardia corporativa é alimentada pela lógica do capitalismo de plataforma e da cultura do cancelamento. Empresas, temerosas do poder destrutivo das multidões online, adotam uma postura reativa e servil, privilegiando a “pacificação” da horda digital sobre a justiça e o respeito aos seus colaboradores. É a tirania da reputação instantânea sobre os processos demorados, porém necessários, da verdade e do direito.
O evento mostra que a cultura do cancelamento opera como ritual moderno de coesão tribal. A audiência age como horda religiosa, sedenta por pureza e espetáculo. O cancelamento é um exorcismo simbólico que transforma falhas humanas em heresias imperdoáveis. Fábio de Melo, ao se colocar como vítima, ativa o instinto de caça ao culpado. A cafeteria, para manter-se “pura”, entrega o trabalhador ao altar da reputação. A justiça não é buscada — é encenada.
O Gerente e a falha humana: Um erro não justifica outro
Não se pode ignorar que o gerente também, supostamente, errou. Sob sua gestão, permitiu preços errados nas prateleiras. Se tivesse resolvido a questão com tranquilidade, leveza e presteza, a situação poderia ter tomado outro rumo.
No entanto, um erro não apaga nem justifica outro. Todos erraram neste episódio, com a diferença crucial de que o gerente, um anônimo, não detém o poder ou a capacidade de difusão e tração de influência comparável à do Padre que o destratou. A assimetria de poder é gritante e define a injustiça fundamental do caso.
A Lógica Sacrificial da Marca: Apaziguando o Ídolo da Reputação
Se a ação do influenciador acendeu o pavio, a reação da Havana revela uma patologia sistêmica. Ao demitir o gerente de forma “imediata” e, segundo o sindicato, “visando minimizar os impactos negativos em sua reputação”, a empresa agiu com uma lógica puramente sacrificial. A verdade dos fatos tornou-se irrelevante. A investigação interna foi atropelada pela urgência em oferecer uma cabeça à turba enfurecida para proteger o bem maior: a imagem da marca.
Este é um dos dogmas da religião corporativa moderna: a reputação é sagrada e intocável. Diante de uma crise de imagem catalisada por uma figura de alto alcance, a resposta padrão não é a apuração, mas o apaziguamento. O gerente, neste cálculo desumano, era a peça mais frágil e, portanto, a mais descartável. Sua demissão foi um ritual de purificação. A empresa não “resolveu” um problema; ela realizou uma oferenda pública para aplacar a ira do deus-mercado e de seu profeta-influenciador, esperando que o sacrifício restaurasse a paz e o fluxo de capital.
A reação do ex-gerente: processar todo mundo
A reação do ex-gerente da cafeteria Havanna, Jair José Aguiar da Rosa, após sua demissão, foi buscar reparação judicial contra os envolvidos no episódio que ganhou repercussão nacional. Com o apoio do Sindicato dos Trabalhadores em Turismo, Hospitalidade e de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares (Sitratuh), Jair iniciou uma ação cível contra o padre Fábio de Melo, além de preparar uma ação trabalhista contra a empresa .
O Sitratuh publicou uma nota de repúdio à demissão, classificando-a como precipitada e injusta, e ressaltou que a empresa não apurou os fatos de forma adequada, optando por proteger sua imagem em detrimento dos direitos do trabalhador .
Teocracia pagã do engajamento
O caso é um retrato da falência dos filtros institucionais: jornalismo, devido processo legal, mediação pastoral, sindicância empresarial. Tudo é substituído por cliques, stories e hashtags. A justiça, sem tempo nem filtro, transforma-se em reação emocional. A viralização é o novo habeas corpus. A empresa não investiga, o influenciador não dialoga, o público não espera.
Esta era atual é de um sistema sem freios: uma teocracia pagã do engajamento.